Escapou a Aristóteles

Solidariedade do aborrecimento humano

Nota aos Profissionais da Educação: Este texto é um excelente recurso didático para o ensino de Física, especialmente no tópico de quantidade de movimento.
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“Outra coisa que também me parece metafísica é isto: – Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, – é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; – a terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, – o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que poderemos chamar – solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este capítulo escapou a Aristóteles?”

Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas

O que escapou a Aristóteles certamente não escapou a Machado de Assis, nem a René Descartes e Isaac Newton — ao menos no que diz respeito à parte física do problema. A transmissão de movimento entre as bolas no clássico machadiano exemplifica um princípio fundamental da física: a conservação da quantidade de movimento.

No século XVII, Descartes propôs que o produto da massa de um objeto (m) por sua velocidade escalar (v) se mantém constante nas interações entre os corpos; ele nomeou esse produto de 'quantidade de movimento', expressa pelo símbolo Q.

Segundo Descartes, se um objeto colide com outro, a quantidade de movimento total do sistema formado pelos dois corpos é a mesma antes e depois da colisão.

Podemos observar um exemplo prático dessa conservação quando duas esferas maciças, que denominaremos A e B, colidem frontalmente.

A esfera B tem o dobro da massa de A e está inicialmente parada, portanto, sua quantidade de movimento inicial é nula.

Se conhecemos a velocidade da esfera A antes da colisão, estaríamos interessados em descobrir o que acontece com as velocidades das duas esferas imediatamente após o choque.

Assumindo que a colisão ocorre sem dissipação de energia — um cenário conhecido em física como choque perfeitamente elástico —, os estados imediatamente antes, durante e após o impacto são ilustrados na figura a seguir.

Como propôs Descartes, a quantidade de movimento do sistema deve se manter a mesma antes e depois da colisão. Desse modo, podemos utilizar essa conservação para escrever a seguinte igualdade e calcular a velocidade final de B.

Como era de se esperar, a velocidade da esfera B após a colisão depende tanto da velocidade inicial da esfera A quanto da sua velocidade após o choque, que ainda não conhecemos.

Para determinar essa velocidade após a colisão, precisamos de uma segunda equação. Considerando que a energia se conserva durante o choque, podemos aplicar a conservação da energia cinética para estabelecer essa relação...

... e, igualando as equações 1 e 2, podemos obter a velocidade da esfera A após a colisão.

Note que o sinal é negativo, isso indica que a velocidade está em uma direção contrária àquela que assumimos inicialmente.

Portanto, nesse caso, a esfera A se choca com a esfera B, e a colisão faz com que a esfera A mude a direção de seu movimento.

Finalmente, para calcular a velocidade da esfera B após a colisão, podemos usar o resultado obtido na equação 2.

Assim, após a colisão, as esferas assumem a configuração mostrada abaixo, com as setas, assim como nas figuras anteriores, representando as velocidades. Os tamanhos dessas setas são proporcionais à velocidade vA, que está indicada no topo da figura para referência.

A proposição de René Descartes, válida para o caso da colisão que discutimos até aqui, não é completa.

Acontece que, se a colisão não for frontal, como na figura a seguir, onde as esferas se chocam no ponto de encontro de suas trajetórias, os resultados experimentais não concordariam com o proposto pelo cientista francês.

Foi Isaac Newton, como é costume na mecânica clássica, que formulou de modo completo a proposição inicial de Descartes. De acordo com Newton, a quantidade de movimento deveria ser tratada como uma grandeza vetorial e não escalar.

Uma grandeza escalar, como a massa, é simplesmente um número, muitas vezes acompanhado de uma unidade, cuja descrição já é suficiente para resolver o problema. Por exemplo, se algo tem uma massa de 1 kg, nenhuma informação adicional é necessária para entender essa grandeza.

O segundo tipo, o vetorial, requer mais detalhes; a velocidade é um exemplo. Dizer que algo tem uma velocidade de 100 km/h não é completo: é necessário saber em qual direção (p, q ou r, por exemplo) e sentido (de 1 para 2 ou de 2 para 1) essa velocidade ocorre.

Desse modo, para resolver o problema no caso vetorial, podemos decompor o vetor velocidade em componentes nas direções horizontal e vertical, por exemplo, o que exige um pouco do conhecimento de trigonometria e o conhecimento de fórmulas como o teorema de Pitágoras, e aplicar a conservação da quantidade de movimento separadamente para cada uma dessas direções, como ilustrado na figura a seguir.

Com as velocidades antes do choque, as massas das esferas e o ângulo entre as trajetórias das esferas conhecidos, o estado após a colisão pode ser determinado como no exemplo anterior –– desde que não haja dissipação de energia.

CITAÇÃO DE HOJE

SUGESTÃO DO NOSSO TIME

A sugestão de hoje não poderia ser mais óbvia: "Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que, embora não seja relacionado às ciências exatas, é uma leitura valiosa para qualquer mente curiosa.

Um clássico atemporal de Machado de Assis, o livro possui uma das aberturas mais marcantes da literatura brasileira e oferece um mergulho profundo na sociedade e na condição humana.

E o melhor de tudo, a obra é parte do domínio público e pode ser lida gratuitamente aqui.

“A obra em si mesma é tudo; se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote, e adeus. Brás Cubas.” 

Por hoje é só, obrigado pelo seu tempo, e até a próxima!